Espetáculo Lou & Leo: Eu tenho que recomendar – muito! – essa peça!

Conheci o Leo Moreira numa academia de ginástica, lá no centro de Sampa. Aos poucos fui percebendo toda a sua dimensão humana e sabendo, por ele mesmo, da sua inusitada história de vida, dos seus sofrimentos e alegrias e me contagiava com o seu sorriso e a sua transparência. Nesta peça, tem muito do que acreditamos ser a existência de quem realmente se entrega. Por que o Leo poderia ter desistido. Era isso o que queriam dele, a sua desistência. Mas, não. Não só não desistiu como foi além, ampliou tanto a sua vida que esta se transformou num belíssimo espetáculo teatral, onde vida e arte são exatamente a mesma coisa.

Já o Nelson Baskerville eu conheci na famosa EAD – Escola de Arte Dramática, nos idos 1978, cursamos juntos. Não sei se ele se lembrará de mim, mas eu não o esqueci, não esqueci seu amplo talento e seu sorriso contagiante. E mais, lembro-me do quanto ele me estimulava, me elogiava com carinho e sempre tinha uma palavra legal para levantar o ânimo da gente naqueles tempos duros. Lou & Leo reestreia agora, dia 04 de outubro, no Teatro do Ator, na Praça Roosevelt, Sampa, após uma temporada de sucesso no Satyros. Veja! São discussões que urgem perante toda a nossa diversidade humana e ampliam em nós o sentido de universo. Abaixo, o depoimento dos dois, Nelson e Leo, sobre o projeto que tanto nos encantou.

Ricardo Rocha Aguieiras

Lou&Leo
meus projetos pessoais terão que esperar

Por Nelson Baskerville

Em maio de 2012, após a apresentação de Luís Antônio-Gabriela no Páteo do Colégio, fazendo parte da Virada Cultural Paulista, Leo Moreira Sá me procurou. Antes disso eu tinha tido um breve encontro com ele como responsável técnico no teatro dos Satyros. Gabriela o tinha tocado. Ele então me convidou para uma mesa de discussões sobre Teatro e Diversidade Sexual na qual fui com prazer. Era uma continuação de uma dívida que eu contraíra com Luís Antônio; e depois da estréia do espetáculo em 2011, nunca deixei de atender a um só convite que discutisse esse assunto. Continuo assim, com prazer. Quando Leo fez uso do microfone falando da transexualidade com tanta propriedade eu não conseguia entender qual a ligação dele com tal assunto. Talvez ele também tivesse um irmão, irmã, parente transexual. Saí do encontro sem saber e sem perguntar. Nessas ocasiões meus antepassados ingleses gritam na minha alma: nunca faça uma pergunta capaz de constranger o outro ou a si próprio. Logo depois ele me procurou novamente para me convidar a dirigir um espetáculo que falava de sua vida e na primeira reunião constatei. Léo havia sido Lou. Não consegui disfarçar o espanto e fascínio que tive ali na frente dele. A história que ele queria contar era novamente um Luís Antônio-Gabriela invertido. Eu poderia, por questões de carreira, declinar para não repetir o assunto, para não ficar marcado ou para não acharem que eu achei na diversidade “o meu filão”. Claro que essa idéia horrorosa do inferno em que vivemos também passou pela cabeça. Mas ao mesmo tempo eu não hesitei um só momento. Não disse um “vou pensar”, “vou ler o texto antes”, porque não se tratava só de mim, eu tenho consciência do que despertei depois de Luís Antônio. E não há nenhuma “questão de mercado” que me impeça de fazer aquilo que eu tenho que fazer. Gosto do Brecht quando ele diz que a arte deve se preocupar com as “tragédias que poderiam ser evitadas”. Experimentei isso com relação ao meu irmão/irmã e vi em Lou&Leo novamente a mesma história, o mesmo preconceito, a mesma descriminação. O espetáculo é mais um documentário cênico performático que me desafia e me tira noites. Leo não é ator. É um homem contando a própria história no palco. Uma vida rica. Um homem em um corpo feminino que desceu ao Hades e voltou para passar a experiência (se não for assim nada faz sentido na vida). Um menino que um dia é obrigado a vestir uma saia para poder ir à escola. A vinda pra São Paulo; ele é natural de São Simão, perto de Ribeirão Preto. O abuso sexual. A entrada na USP, a entrada nas “Mercenárias” onde foi baterista. A história de amor com Gaby, uma travesti com quem ele casou. O envolvimento com as drogas, o tráfico, a prisão em 2004 e o ingresso na Companhia dos Sátyros que lhe valeu, junto com Rodolfo Garcia Vazquez, o premio Shell de iluminação de 2012.

A discriminação é um erro que cometemos como humanidade. Faço Lou&Leo para entender melhor o que é gênero (descobri que são muitos e não precisam de rótulos). Para entender melhor o humano e as mentiras que nós nos contamos como humanos.

Lou&Leo como catarse
Leo Moreira Sá

Depois de assistir o Teatro Documentário Luis Antonio-Gabriela, tive a certeza que Nelson Baskerville era a pessoa certa pra dirigir meu projeto de contar minha história no palco. Liguei pra ele preparado pra ouvir um "não", afinal eu estava há apenas 4 anos no teatro enquanto ele, um grande ator e diretor com 33 anos de profissão. Mas surpreso e emocionado eu ouvi ele responder "sim" ao convite, sem titubear . No nosso primeiro encontro eu falei que queria protagonizar minha história mas que, embora já tivesse atuado em 2 espetáculos do Satyros: "Hipóteses para o amor e a verdade" e "Cabaret Stravaganza", eu não tinha formação de ator. Ele disse : "não se preocupe com isso. O meu trabalho será mesmo tirar todos os personagens que existem em você. Eu quero a pessoa verdadeira contando sua história."

Tive a honra de passar tardes inteiras em sua companhia elaborando a dramaturgia do texto, tomando deliciosos cafés expressos sentado no sofá de sua sala, rodeado de pinturas de sua autoria (ele também é artista plástico). Escolhíamos também as músicas da trilha e elaboramos a iluminação. Pensava o quanto eu era um cara de sorte de ter ganho o prêmio shell/2012 de melhor iluminação pela criação da luz do Cabaret Stravaganza com o mestre Rodolfo Garcia Vazquez da Cia de teatro Os Satyros, e depois poder compartilhar a criação de texto, dramaturgia, luz, sonoplastia com o aclamado e premiado diretor Nelson Baskerville. Nesse primeiro contato tivemos momentos de descontração mas ele só estava me preparando pra começar a parte mais difícil: o processo de criação do espetáculo. Desde o ensaio da primeira cena sobre a minha infância eu comecei a entrar em contato com minha fragilidade...as lembranças vinham com força e me derrubavam. Estudava o texto em casa mas no ensaio eu gaguejava, trocava as palavras...simplesmente não conseguia ir até o fim. Todos os dias eu chorava durante ou depois do ensaio. O Baskerville então me perguntou se eu queria que as pessoas tivessem pena de mim ou se eu queria fazer arte? Ele tinha razão.Pra contar a minha história eu teria que parar de sofrer, depurar as emoções e me distanciar pra poder ser um "eu"imparcial, um narrador de mim mesmo . As descargas emocionais chacoalhavam meu corpo e minha mente e muitas vezes eu me perguntava se ia conseguir. Só depois de 3 meses de muita disciplina e de um sofrido processo catártico as emoções foram se apaziguando. Até hoje eu não sei se consegui essa imparcialidade necessária, mas o rigor e a disciplina desse artista primoroso me qualificaram pra assumir qualquer risco. Afinal, a performance é uma situação de risco.

O espetáculo tem como mote principal a transexualidade, mas fala também de todas as inadaptações, a necessidade e a dificuldade que o ser humano tem pra se enquadrar nos modelos sociais propostos pela nossa cultura heteronormativa. Em nossas temporadas, tem sido muito emocionante constatar que tocamos pessoas de todas as idades, independente de sexo, gênero ou orientação sexual . Conheci uma moça que depois de ver Lou&Leo, foi com o filho adolescente e, no dia seguinte, levou a filha com a namorada e a família da namorada.

Sob a direção de Baskerville, a crueza da verdade e o lirismo se mesclararam na composição de Lou&Leo, onde falo da minha busca por mim mesmo, minhas contradições, minhas fraquezas, derrotas e vitórias. Não consegui expulsar meus demônios, eles continuarão pra sempre na minha vida, só que sentados comigo numa eterna mesa de negociação. Cheguei à conclusão também que não existem respostas definitivas pras nossas questões porque estaremos sempre reformulando as perguntas numa eterna busca. Transformando o sofrimento num sentimento mais nobre próximo à generosidade, entrego a minha vida não como um exemplo a ser seguido mas como exemplo do que pode acontecer a todas as pessoas expostas às vulnerabilidades sociais.

Teatro do Ator
Praça Franklin Roosevelt, 172
Consolação - São Paulo - SP
3257 3207


Estréia 04/10 as 23hs.

11, 18 e 25 de Outubro 21h30

Fotos para divulgação:









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