A roupa nova do imperador

Por: Walter Silva

"... e um dia apareceram dois indivíduos com um ar suspeito que diziam ser tecelões. Mas, segundo eles, o tecido que fabricavam não só era extraordinariamente belo como tinha ainda propriedades mágicas: mesmo quando transformado em peças de vestuário, era invisível para todas as pessoas que não desempenhassem bem as suas tarefas ou que fossem particularmente estúpidas" (Hans Christian Andersen)

O pós-modernismo chupinhado em boa parte das idéias do filósofo francês impostor Michel de Foucault faz surgir um bizarro cenário na atualidade; vêem-se, com frequência perturbadora, gays, lésbicas, bissexuais e pessoas trans* ocupando o mesmo espaço ideológico dos nossos inimigos históricos, discursando contra os direitos civis das pessoas da comunidade LGBT.

Em um debate diante das câmeras da BBC sobre o casamento do mesmo sexo, por exemplo, a acadêmica lésbica adepta do dogma da moda,a Teoria Queer, Anna Marie Jagose, defendeu abertamente que gays e lésbicas não devem ter o direito ao casamento assegurado. A professora estava na mesma equipe do fundamentalista cristão Nick Tonti-Filippini, diretor de bioética do Instituto João Paulo II para o matrimônio e em defesa da família.

É claro que Jagose não faz uso dos mesmos argumentos que o Filippini, nem estou aqui a sugerir tal coisa. Entretanto, é possível encontrar um ponto de intersecção entre ambos; Nick Tonti-Filippini acredita em um mundo onde um deus ilusório faz chover sobre os mortais comuns a sua vontade, que se impõe a todos, recusando a existência de pessoas homossexuais, bissexuais e transgêneras, dado que não os criou assim. Anna Marie Jagose, por seu turno, crê na existência de um mundo niilista onde não existem instituições, individualidade, personalidade, categorias, identidade e um sujeito atuando. Ambos afiançam brigar pela "liberdade" e "igualdade", pasme. O cristão fundamentalista acha que todos são inerentemente heterossexuais, portanto, os desviados da norma devem se curar da sua perversão e voltar a ser o que sempre foram; um enorme padrão único. A teórica queer feminista pensa que se há desabrigados neste mundo, resolve-se o problema deles derrubando as casas onde vivem os que têm um teto, porque não há nem heterossexuais, nem homossexuais, não há cisgêneros nem transgêneros, não há homem nem mulher, não há sujeito nem humanidade, as habitações não existem e imaginar uma habitação é distribuir opressão. O que há é o limbo brumoso polimorfo original, um outro padrão único universal, substituto para o padrão heteronormativo.

Outro dia li uma coisa engraçada em um blog de um ativista LGBT americano; ele ironizava que os pós- modernos são tão aferrados ao tema da "desconstrução" (conceito baseado na fantasiosa gramatologia derridiana) que ele se admirava de tais pessoas ainda conseguirem respirar, considerando que a descrição do processo respiratório é em si uma construção social.

Com efeito, o relativismo e subjetividade idealista do dogma da construção social que reduz tudo à uma projeção mental comandada pela linguística nos obriga a vivenciar situações vexatórias; de um lado temos pessoas lutando pela legitimação e visibilização de suas identidades estigmatizadas por séculos de opressão e discriminação virulenta, enfrentando a dura realidade do dia a dia. Do outro lado há os teóricos Queer, recusando a demanda das políticas de identidade, em nome de uma suposta resistência maoísta guerrilheira, atrapalhando visivelmente a conquista de direitos civis, prestando assim dessa forma um imenso desserviço à comunidade LGBT. Em uma primeira resposta a isto, estes teóricos pós modernos, referendados justamente pelas instituições que tanto rechaçam (academia, universidades, consultórios, cargos no legislativo etc), tecendo nestes locais uma pseudo crítica (pois criticam o poder e as relações de poder na qualidade de aliados e beneficiários do poder) ensaiam uma enganosa cantilena; "nós queremos direitos, não queremos identidades". Ora, se a própria noção de"direitos humanos" é objeto de contestação do dogma construtivista, a quem essas pessoas querem ludibriar nesta altura? A quem pretendem enganar afirmando paradoxalmente que em lugar de rótulos identitários, basta que se invoquem os termos "gente", e "pessoa" no lugar de "gay" e "lésbica" ou "transgênero"? Por acaso os termo "gente", ou "pessoa", ou "natureza humana" não comportam em si um rótulo identitário desde já esvaziado e desautorizado?

Mais do que propor uma mudança de paradigma, o pós-estruturalismo propõe uma "revolução" grandiosa; tal e qual os maoístas de antanho, uma revolução que não há de correr mediante "acordos" e "assimilação" (jargão preferido por nove entre dez dos pós-modernos, ao lado do "bio poder"). Por este motivo, principalmente, costuma-se acusar os identitários de egoísmo, de alienação, de ser "cooptados" pelo "sistema" (outra expressão socialista folclórica e lugar comum à muito desacreditada).

Recentemente em um fórum de discussão virtual, um venerável pioneiro de movimentos sociais LGBT foi surpreendido ao ser informado arbitrariamente por uma fanática idealista pós- moderna que todo aquele que reivindica uma identidade para si é igual a um nazista.

Dessa perspectiva em diante não é muito difícil visualizar o dia em que declarar a preferência exclusiva por um determinado gênero tornar-se-há fonte de opróbrio e censura para todos, e a homofobia deixará de existir para ceder lugar à "panfobia", considerando que a categoria de gênero não existe, e o desejo íntimo homossexual não passa de uma inversão construída culturalmente em função da sua oposição heteronormativa, conforme apregoam os dogmas construtivistas. Estou já a vislumbrar, sem correr o risco de parecer exagerado, a época em que pessoas exclusivamente gays ou exclusivamente heterossexuais serão taxadas de panfóbicas, e condenadas pelo crime de discriminação. A propósito, esta visão da homossexualidade como um espelho invertido da heterossexualidade não é inovadora. Rictor Norton, historiador e acadêmico LGBT, recordou o antigo viés psiquiátrico e patologizador do homossexual enquanto invertido do heterossexual como um mito bastante difundido. 

Porém, registros de tribunais inquisitoriais e relatórios médicos mais tarde atestam que a existência de gays é imediatamente acompanhada de surpresa, considerada como revelação por pessoas heterossexuais; com frequência, a exposição chocante de algo completamente desconhecido e alheio às suas vidas, desmentindo a noção de "construção" em termos de inversão da norma. Além disso, tais registros falam de segredos, de censura, de processos jurídicos e prisões de sodomitas que ocorriam no mais absoluto segredo; não se falava sobre o assunto em parte alguma, o pecado nefando não era publicitado. Donde isso ajudou a criar uma sexualidade pervertida em oposição a uma sexualidade normativa?

À guisa de ilustração; um jornal australiano publicou matéria datada de março de 1932 onde se mencionam naquela remota década e centúria passada casamentos realizados entre homens em Brisbane, ocorrendo à revelia do conhecimento público, fato que chocou e surpreendeu a todos, bem antes da eclosão da AIDS, evento que Judith Butler afirma que desencadeou a aspiração ao matrimônio entre os gays, que ela classificou como uma "resposta envergonhada" à epidemia.

O argumento de Foucault, do suposto binarismo/dicotomia hétero/homossexualidade criado a partir de fins do século 19 por médicos e paramédicos de modo a promover uma sexualidade útil e conservadora, ligado intimamente ao surgimento do capitalismo, visando o controle das pessoas mediante a fabricação de uma identidade corporal naturalizada, é insustentável frente à extensa evidência histórica.

Aristóteles em "Ética a Nicômaco" assegurava já que algumas pessoas eram naturalmente "inclinadas" para o mesmo sexo.

Ilhara Saikaku, no "O grande espelho de amor entre homens", diz que há dois tipos de homens que gostam de outros homens; Onna-Girai e Shoujin-zuki. Onna-Girai (inimigo das mulheres) exclusivamente homossexual; Shoujin-zuki, bissexual, casado com mulher. A preferência exclusiva pelo mesmo sexo não indica aqui orientação ou inclinação? 

Em um diálogo atribuído à Luciano de Samosáta, "Assuntos do coração", um personagem comenta que é possível descobrir a preferência sexual de um amigo observando o gênero dos escravos dele.

Entre os grafitti e pinturas eróticas da cidade de Pompéia, no bar e bordel de Innulus e Papilio está escrito:

"Garotas podem chorar.
O meu pau tem negado-lhes fogo.
Agora ele só fode os traseiros masculinos.
Adeus,fêmeas gostosas"

A teoria da construção social não consegue explicar o fato de que vários tipos de pessoas pré-modernas recusavam peremptoriamente o gênero oposto.Em se tratando de Foucault, porém, nada disso deve surpreender aos mais conscienciosos; a propaganda das idéias baseadas em suas teorias por parte dos seus apologistas é ainda mais escandalosa que aquela auto-propaganda encontrada em seus escritos. Halperin chega ao grotesco de afirmar que o filósofo é "sagrado", e um homem santo, destacando assim a impossibilidade de lhe dirigirem críticas. Temos outrossim, uma autêntica doutrina mística hiper idealista aqui, e um profeta guru (profeta suspeito, conforme eu investiguei junto aos seus inúmeros críticos, formalmente e convenientemente ignorados por seus prosélitos da academia).

Quem se lembrará agora do formidável erro do filósofo conhecido por seus princípios contra todos os "dispositivos" de normatização e poder que se deixou seduzir pelo islã fundamentalista ignorando os apelos das feministas iranianas e dos laicistas, refutando suas previsões sombrias e desautorizando implicitamente toda sua filosofia anterior sobre a ausência de uma identidade e inexistência de distinções ao aceitar tacitamente a astuciosa fala dos líderes e mulás islâmicos sobre uma "igualdade de direitos" entre homens e mulheres dentro de uma "diferença de natureza" na teocracia islâmica?

Conforme ele observou à época, antes dos enforcamentos de homossexuais e dos opositores do novo regime: "Os clérigos não eram apenas democráticos, mas também possuíam uma visão política criativa: "Uma coisa deve ficar clara por 'governo islâmico', ninguém no Irã pensa que isso significa um regime político em que o clero teria um papel de supervisão ou controle".

E: "Com respeito às liberdades, serão respeitadas na medida em que seu desfrute não prejudique o próximo; as minorias serão protegidas e livres para viver de seu jeito com a condição de não causar dano a maioria"

Com relação a esta última assertiva, uma refugiada iraniana na França, incrédula, questionou direta e incisivamente o filósofo (desmentindo a informação de que era impossível prever os desdobramentos políticos do episódio): "Desde quando as minorias começaram a prejudicar a maioria?" A resposta dele foi curta e grossa: "A primeira condição para compreender o Islã com o mínimo de inteligência é deixar o ódio de lado".

Logo que as mulheres iranianas começaram então a ser esfaqueadas por recusar a usar o véu negro, e execuções sumárias de homossexuais se tornaram conhecidas no ocidente, o "grande analista" do poder foi chamado a dar explicações sobre o fiasco dos seus equívocos, mas ele saiu pela tangente, afirmando que nunca se envolvia em polêmicas. Agora, quem desmentirá Foucault? Quem vai avisar ao imperador que ele está na realidade nu?

Comentários

  1. Walter Silva, mais uma vez, nos empodera para os tremendos ataques que temos recebido d@s teóricos e teóricas queers: ser chamado de "Nazista" por uma delas, que um dia se diz trans* e no dia seguinte se diz mulher heterossexual cis e no outro homem heterossexual cisgênero e acha isso a maior transgressão do mundo, foi grave demais. Walter traduziu tudo o que senti perante tamanho horror de que apenas pelo fato de eu assumir, gostar e me orgulhar de ser gay já é um atributo de um nazista, segundo essa pessoa. E essa pessoa só bem mais recentemente assumiu sua transexualidade, enquanto eu já saia para as defendendo trans*e travestis desde o final dos anos 70 . Se um bando de neonazistas ( os de verdade...risos) cruzar com você numa esquina da vida, ele, o bando, não vai querer saber se você é um gay, lés ou trans* identitári@s ou não, nem se é adept@ ferrenho da teoria queer, eles vão te matar! Uma pena que o Movimento LGBT, já tão alquebrado com o partidarismo e @s partidaristas, ainda tenha que sofrer esse ataque sem fim dessa gente acadêmica que se julga superior ao alegar que não possuem identidade.
    Ricardo Rocha Aguieiras
    aguieiras2002@yahoo.com.br

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  2. Porra, como dói esse fim...jamais pensei que fosse doer tanto, como dói dentro da gente...
    Ricardo Aguieiras

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