A tradição renegada

Por: Walter silva

O debate sobre o casamento do mesmo sexo na atualidade produz uma controvérsia infindável, e quanto mais se fala no assunto, menos se parece clarear alguma coisa de modo conclusivo.

Apelidado pelos ativistas LGBT modernamente de modo enganoso "casamento igualitário" numa tentativa ingênua de desvincular da polêmica que a expressão "casamento Gay" traz a reboque, o casamento do mesmo sexo está novamente na berlinda, especialmente após recentes declarações do sumo pontífice da igreja Católica Romana, Papa Bento XVI, e das manifestações histéricas dos conservadores na França.

O Papa citou o trabalho de um rabino chefe para nomear o casamento do mesmo sexo de "ataque" ao modelo heterossexual de família e acusar os defensores do igualitarismo de manipular o gênero biológico para adaptar-se a seus desejos sexuais. Um arcebispo francês de Lyon, Philippe Barbarin, chegou a sugerir que o casamento gay vai abrir espaço para a poligamia e o incesto; em dezenas de cidades na França os manifestantes antigay empunharam faixas com as palavras de ordem "Casamento = Um homem, uma mulher", tomando de assalto uma tradição que se supõe erroneamente lhes pertencer em totalidade.

A reivindicação do casamento do mesmo sexo, no extremo oposto do discurso dos reacionários, que é o discurso da naturalidade e sacralidade do matrimônio, porém, sofre igualmente com a retórica dos ativistas adeptos da teoria queer e do construcionismo social, que se lhe opõe sub-repticiamente em nome da rejeição da perigosa assimilação cultural e apropriação de valores normativos heterossexuais, a chamada "heteronormatividade", crença derivada dos estudos de Foucault, que chamou o casamento em si de "instituição relacional empobrecedora".

Por "heteronormatividade" compreende-se a reprodução de "práticas e códigos heterossexuais", sustentada pelo "casamento monogâmico, amor romântico, fidelidade conjugal e filhos" (Foster, David W. In "Considerações sobre o estudo da heteronormatividade na literatura latino americana", 2001, pág 19). No rastro da controvérsia, surgem algumas questões pertinentes;

É correto afirmar que o casamento do mesmo sexo é uma mera imitação ou paródia do casamento do sexo oposto?

A "atual" aspiração ao casamento seria uma "resposta envergonhada da comunidade gay à epidemia de AIDS" conforme declarou a feminista Queer Judith Butler? ("Faz sentido que o movimento gay e lésbico se volte para o Estado, dada sua história recente: a tendência recente para o casamento gay é, de certo modo, uma resposta à AIDS e, em particular, uma resposta envergonhada, uma resposta na qual a comunidade gay busca desautorizar sua chamada promiscuidade, uma resposta na qual parecemos saudáveis e normais e capazes de manter relações monogâmicas ao longo do tempo" (Butler, 2003:239).

O modelo convencional de casamento por amor, fidelidade conjugal e monogamia é realmente uma invenção capitalista burguesa heterossexual?

Os gays estão mesmo tentando remodelar e desconstruir o casamento do sexo oposto?

E por fim; a instituição do casamento possui uma trajetória unicamente heteronormativa? 

"Chama de volta o passado" (Hamlet)

De acordo com a Associação Americana de Antropologia, "Os resultados de mais de um século de pesquisas sobre unidades domésticas, relações de parentesco e famílias, em diferentes culturas ao longo do tempo, não fornecem qualquer tipo de evidência científica que possa embasar a idéia de que a civilização ou qualquer ordem social viável dependa do casamento ser uma instituição exclusivamente heterossexual. Ao contrário, as pesquisas antropológicas fundamentam a conclusão de que um imenso leque de tipos de famílias, incluindo famílias baseadas em parcerias homoafetivas, pode contribuir na promoção de sociedades estáveis." (2004,Statemant on marriage and the family from the American Anthropological Association).

Com efeito,um comentário exegético judaico do Levítico, a Sifra Acharei Mot, escrito no terceiro século da era cristã, se referindo a proibições de práticas consideradas cananéias e egípcias, atesta a existência do rito de casamento do mesmo sexo no passado remoto:

Parasha 09:08:

"Levando em conta as obras da terra do Egito (...) e as obras da terra de Cânaã(...) você não deve andar conforme suas leis.

Isto você não deve fazer, pois.

E o que eles fizeram (no Egito e Canaã)?

Um homem se casou com outro homem, e uma mulher se casou com outra mulher (...).
É por isso que é dito que ’você não andará conforme suas leis’"

Coincidentemente, em 1964 na antiga necrópole de Saqqara, o arqueólogo egípcio Ahmed Moussa descobriu uma série de tumbas escavadas na rocha com passagens voltadas para a estrada que leva em direção à pirâmide de Unas.

Logo após a descoberta o inspetor chefe Mounir Basta relatou que ao entrar em um dos túmulos rastejando de joelhos ficou impressionado com o retrato esculpido da cena única de dois homens num abraço íntimo, algo que ele jamais havia visto antes em todas as tumbas de Saqqara.

Foi revelado que esta tumba original tinha sido construída por dois homens que moravam juntos e compartilhavam o mesmo título no palácio do rei Niuserre da quinta dinastia;

"Supervisor de Manicure do palácio do rei".

Eles se chamavam "Niankhkhnum" e "Khnumhotep" e seus nomes foram romanticamente entrelaçados na entrada do túmulo, formando um único nome; uma tradução possível seria "Unidos na vida e unidos na morte".

Na parede sul do hall de entrada pode-se ver uma ilustração deles caminhando de mãos dadas numa visita de inspeção; na capela das ofertas estão as representações mais íntimas. Os manicures identicamente vestidos, abraçados, os narizes tocando-se na ponta (um gesto equivalente a um beijo na boca, segundo os especialistas no período).

Estão rodeados de crianças, embora as esposas não tenham sido incluídas nas cenas.

Os egiptólogos consideram "problemático" entender a relação entre os dois homens.

As teorias mais disparatadas foram criadas; foi dito que eles eram irmãos gêmeos siameses, por isso a afeição exagerada, não obstante as cenas mostrarem ambos separados.

Greg Reeder sugeriu simplesmente que eles poderiam ter sido amantes.

Na parede oriental da câmara de oferta o par foi retratado no abraço mais íntimo possível dentro dos cânones da arte egípcia antiga; Niankhkhnum está agarrando o antebraço direito do seu parceiro, e Khnumhotep enlaça Niankhknum segurando firmemente seu ombro.

Mais uma vez a ponta dos narizes está se tocando e o torso tão próximo que os kilts se confundem; nessa parte mais privada da tumba os dois homens estão em um abraço feito para durar por toda a eternidade.
"Imitação?"

"O casamento, ao longo da história, sempre foi a união entre um homem e uma mulher", fala Rick Santorum, fundamentalista cristão republicano dos EUA.

Rictor Norton, um grande erudito britânico especialista em História gay, em contraste, afirma que homens se casaram com outros homens com frequência em diversas sociedades ao redor do mundo, casamentos oficialmente reconhecidos pelo Estado, como em Esparta e na Ilha de Thera (Rictor Norton, "Taking a 'Husband': A History of Gay Marriage").

Ele relata ainda que em nenhuma dessas culturas há qualquer evidência consistente de que tais casamentos eram uma "imitação" dos arranjos matrimoniais entre homem e mulher; a realidade, por mais chocante que possa parecer, é que o casamento heterossexual é que parece ser uma cópia de um padrão essencial encontrado em relações do mesmo sexo. As formas mais primitivas de casamento entre pessoas do sexo oposto envolviam travestilidade e sexo grupal, raramente exclusivo para heterossexuais (ver o livro de Marie Delcourt, Hermafrodita, 1961).

No território da mitologia, que contém o registro do passado pré histórico, relatos de uniões entre homens e mulheres são raríssimas ou inexistentes, embora as uniões do mesmo sexo surgem como um tema central recorrente das primeiras sagas culturais.

As provas 

Em 342 o imperador Constâncio II emitiu um decreto impondo uma punição requintada para o homem que se dá em casamento a um afeminado, na condição de usar o afeminado como macho ativo para si (Código de Teodósio), fornecendo uma prova indireta do rito de casamento do mesmo sexo.

O conjunto mais sólido de evidências disponíveis é encontrado, pois, nas fontes romanas; o poeta satírico Marcial descreveu com detalhes no ano 101 uma cerimônia de casamento entre dois homens, ambos totalmente másculos, um exemplo de homossexualidade exclusiva e igualitária de longo prazo, distinta do padrão grego da pederastia:

"O barbudo Callistratus se casou então com o musculoso Afer, na forma comum sob a qual uma virgem desposa o seu marido.

As tochas brilhavam abrindo caminho, o véu cobrindo o rosto, e até o dote foi declarado".

Marcial sugere acima que o casamento ocorreu sob as mesmas leis que unem homem e mulher (Boswell, "Christianity, Social Tolerance, and Homosexuality").

O biógrafo de Heliogábalo, Lampridius, igualmente sustenta que após o casamento do imperador com um atleta de Smyrna, qualquer homem que desejasse progredir na corte imperial ou tinha de ter um marido ou fingir que tinha um.

Nero se casou duas vezes com o mesmo sexo, tanto nas cerimônias públicas quanto no ritual apropriado ao casamento civil; em pelo menos uma dessas cerimônias houve o reconhecimento legal, e ao cônjuge do sexo masculino foram concedidas as honras de Imperatriz. Os casamentos sucessivos de Nero com o mesmo sexo são atestados nos escritos de Suetônio,Tácito e Dio Cassius (Boswell, ibdem).

Juvenal na "sátira segunda" (A moralidade dos imorais), confirmando a tradição do casamento do mesmo sexo em Roma, no ano 117, se refere desdenhoso e escandalizado ao casamento do aristocrata Graco com um humilde tocador de corneta:

"Graco ofereceu um dote de 400 mil sestércios para um tocador de corneta.

Documentos de casamento foram assinados, felicitações oferecidas, sentaram-se para o grande banquete, e a 'noiva' se refestelou no colo do marido.

Este homem que agora ostenta babados, um véu e vestidos carregou outrora os instrumentos sagrados e suava sob o escudo de Marte."

Juvenal escarnece ainda das noivas do sexo masculino, deplorando sua esterilidade, o que traria prejuízos à união.

O viés homofóbico da sátira de Juvenal, contudo, deixa entrever a fundamental e pungente diferença entre as uniões de mesmo sexo e as de sexo oposto em Roma antiga; o casamento entre homens é um rito de amor e igualdade.

Graco se casou com alguém inferior a ele (socialmente), e alguém que não lhe daria herdeiros.

A maioria dos estudiosos acredita que tais arranjos não eram juridicamente válidos; a lei romana dizia expressamente que o casamento ocorria somente entre um homem e uma mulher, para fins de procriação. A atitude negativa e alarmada de Juvenal e Marcial, porém, indica claramente que as cerimônias eram socialmente reconhecidas, dado o ancestral valor simbólico, e em breve, validadas juridicamente. O ritual do casamento em Roma antiga estava desvinculado da formalidade da lei, e flutuava livremente ao sabor dos costumes. Um exemplo de cerimônia de casamento desvinculada juridicamente do ato civil foi o matrimônio de Messalina e Gaio Silius, realizada enquanto ela ainda era legalmente casada. Além disso, a queixa de Marcial e Juvenal com relação a essas cerimônias não era a acusação de zombaria dos costumes romanos, o que comprova que o casamento do mesmo sexo era levado a sério, tanto pelos participantes, quanto pelos críticos.

Conforme se observa na Sátira segunda, os casamentos entre homens em Roma estavam se tornando assustadoramente freqüentes;

''-Eu tenho uma cerimônia para assistir na madrugada de amanhã,no vale do Quirinal''

'' -E qual é a ocasião?''

''-Não é necessário perguntar; um amigo está tomando para si um marido. Assunto de pouca importância''

Chama a atenção o fato de que um dos parceiros sempre fazia o papel da noiva, o que pode dar a entender que não houve uma adaptação da cerimônia para casais do mesmo sexo e tudo não passava de um tipo de cópia do casamento do sexo oposto; Rictor Norton, entretanto, opina que a travestilidade ocasional do ritual tinha caráter profundamente religioso e mítico, cujo objetivo maior era honrar a deusa Cibele, padroeira das travestis, eunucos e afeminados.

Referências de casamento entre mulheres são raras, mas o satirista Luciano, nos "Diálogos", transcreve a fala da cortesã Felipa, mulher viril e rica de Lesbos, que afirma com naturalidade: "Anos atrás eu me casei com Demonassa aqui; ela é minha mulher".

Quem copiou quem aqui?

A historiadora e autora hindu especializada em estudos Gays e lésbicos, Ruth Vanita, chama a atenção para o fato de que muitos que debatem hoje sobre o casamento do mesmo sexo desconhecem frequentemente a influência complexa da amizade nos ideais de amor e casamento na modernidade.

"A cerimônia de casamento possui elementos rituais em comum com a antiga cerimônia de confirmação de amizade (ritos de fraternidade), apontando para a natural sobreposição indissolúvel entre o casamento e a amizade" (Love's Rite: Same-Sex Marriage, Vanita, Ruth).

"A palavra 'amigo' perdeu a carga intensa que carregou até o século XIX; na Europa medieval e renascentista, o amante de uma senhora era chamado de seu 'amigo'. Ideais de amizade, tanto no Ocidente quanto na Índia, são muito semelhantes aos ideais de casamento. Amizade, tanto na Europa Pré moderna, quanto entre os hindus, é definida como um relacionamento não biológico de longo prazo, íntimo e exclusivo. Amigos, nas tradições literárias antigas, trocam juras de fidelidade eterna, compartilham tudo, vivem juntos e fazem sacrifícios um pelo outro, incluindo a morte. Amigos são muitas vezes, enterrados ou cremados juntos. Todas essas características são atribuídas também a um casamento ideal ou uma relação de amor ideal.

Aristóteles, ao contrário de Platão, vê as mulheres como inerentemente inferiores aos homens, por isso, de acordo com ele, o casamento é uma união de desiguais, e a amizade, uma união de iguais. Esse ponto de vista foi bastante significativo na Europa Pré moderna."

Em consonância, os ideais de casamento do sexo oposto sempre se basearam na desigualdade; é somente no mundo atual que os cônjuges de sexo diferente buscam se igualar (muitas vezes sem sucesso) numa inequívoca imitação das relações de amizade e romantismo típicas do mesmo sexo.

"A glorificação da igualdade e semelhança hoje no lugar da diferença entre os cônjuges foi emprestada da antiga tradição de celebrar a semelhança nas relações de amizade do mesmo sexo. Por exemplo, atualmente a mulher é chamada de "metade da laranja" do parceiro, mas a frase não é aplicada aos amigos. Antes do século XX, porém, era comum pensar no amigo como sua outra metade ou um segundo eu. Cícero escreve: Quando um homem pensa em seu verdadeiro amigo, ele está se olhando no espelho".

"Oponentes do casamento gay, tanto os conservadores reacionários quanto os teóricos gays radicais, criticam o casamento do mesmo sexo, acusando-o de ser uma imitação do casamento heterossexual. O que eles esquecem é que há uma tradição igualmente longa de uniões ritualizadas do mesmo sexo; esses rituais incluem troca de votos e presentes, comer juntos, andar de mãos dadas, invocação testemunhas" (Vanita, Ruth, ibdem)

Comentários

  1. Eu prefiro pensar a partir da questão Direitos Iguais... não acho errado eu ir por essa linha. Exagerando muito, se fosse um Direito heterossexuais terem uma cota de 100 quilos de sorvete de chocolate por mês eu, como homossexual, quero ter o mesmo direito. Independente de eu usar esse direito ou não, aí, sim, entraria uma escolha minha. Mas, se eu quisesse, eu poderia, como qualquer hétero.
    Portanto, mesmo que eu abra mão ( ou não) , por "n" razões, de casar com quem eu ame ou queira, eu quero ter o direito se heterossexuais o têm. Isso parece ser óbvio, mas, como vemos, gera tanta polêmica.
    Por outro lado, acho, sim, uma pena que a Luta LGBT e o Movimento Homossexual tenham perdido sua carga transgressora que tinham em seus primórdios. No Grupo Somos de Afirmação Homossexual, em 1978, não nos interessava ingressar na sociedade que aí está, devido às suas inúmeras falhas e injustiças, mas queríamos construir uma nova sociedade. Porém, reconheço hoje que isso era e é uma utopia, o que não me impede de me emocionar com ela.
    Eu ainda acho que a família, da forma como ela está constituida e como as pessoas - parentes - se comportam dentro dela, um erro. E um erro grave. Só vi sofrimentos na minha vida na relação "homossexuais X família" e acredito piamente que a instituição "familia", como vem sendo constituida na sociedade moderna, é um reduto de sofrimento, sim. José Angelo Gaiarça, psicanalista, vivia falando isso, dizia que "em 70 anos de atendimento em seu consultório ele nunca atenteu um só paciente que não tivesse queixas e traumas por causa de sua família". Não vejo mal na gente tentar algo diferente nem em questionar padrões. Essa é a minha questão. Não sou adepto da "Teoria Queer", que na verdade nem entendo, bem como não sou adepto de nenhuma forma de conservadorismo. Acho que tanto identitários como os "queers' que conheço cometem graves erros, são humanos. Qual é o mal em se reinventar à cada dia?
    No momento atual, perante o gravíssimo quadro de homofobia e os assassinatos de LGBT's, precisamos, sim, reafimar identidades e termos posturas claras na luta por Direitos legais. Mas, num futuro onde isso já tenha sido conseguido e superado, também penso , sim, que as identidades da sigla LGBT serão insuficientes. Não quero ser visto como um inimigo do Movimento Homossexual só por que penso assim, acho essa briga bastante improdutiva e me parece mais disputa de poder, que, como anarquista que sou, condeno.
    Beijo,
    Ricardo Aguieiras
    aguieiras2002@yahoo.com.br

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