Guaraná, genialidade & formicida


Por: Ricardo Rocha Aguieiras

Meu moreno fez bobagem
Magoou meu pobre coração
Aproveitou a minha ausência
E botou mulher sambando
No meu barracão...

Quando penso que outra mulher
Requebrou pro meu moreno ver
Nem dá jeito de cantar
Só dá vontade de chorar
E de morrer...
Assis Valente in Fez Bobagem

O Brasil é, felizmente, um país de grandes artistas. Uns mais conhecidos e valorizados do que outros, como em todo lugar. Hoje eu quero falar de um constantemente regravado,mas que pouco se conhece de sua vida: ASSIS VALENTE.

E, mesmo que você não saiba quem ele é, em algum natal de sua vida você já ouviu – e cantou! –a canção natalina mais triste e bela até hoje feita. E, penso que esse é justamente o parâmetro pra definir os grandes, quando a obra criada por eles passa a fazer parte da nossa memória e do inconsciente coletivo. Cantamos a música pela sua beleza, mas não sabemos mais quem a fez e nos legou.
A história da vida de José de Assis Valente é a história da reinvenção. Da própria reinvenção. Nasceu em 19 de março de 1911, mas não se sabe ao certo onde: ou em Santo Amaro, ou em Pateoba, ambas na Bahia. Ainda muito pequeno, foi sequestrado por uma família e escravizado, trabalhando como ajudante de uma farmácia. Escravo num país que vivia divulgando o “orgulho de não termos escravos”. Mas Assis aproveitava e lia escondido Castro Alves e, aos dez anos de idade, foge para o Rio de Janeiro num circo, onde trabalhava como declamador. Mais tarde, vai trabalhar como protético e as suas dentaduras e pontes ficaram tão famosas na cidade que Lamartine Babo o cognominou de "O Pivô do Samba".

Mesmo com a sua infância extremamente triste, Assis não deixava seus sambas refletir a sua amargura. Ao contrário, em mais uma reinvenção, sua música era repleta de farra e de alegria, de molejo e de brasilidade, tanto que a grande maioria de suas canções foi gravada pela Carmen Miranda,que acabou se tornando sua intérprete por excelência.

O primeiro grande sucesso de Assis Valente foi Tem Francesa no Morro, gravado em 1932 por Aracy Cortes, que foi a maior artista do Teatro de Revista brasileiro. Uma sátira deliciosa contra o esnobismo de uma elite que insistia em inserir em seus diálogos achados lingüísticos do francês ou inglês, já naquela época se adorava imitar os "desenvolvidos" e nossa baixa autoestima de brasileiro não permitia valorizar o que era nosso...o que acontece até hoje, infelizmente.

Carmen Miranda gravou as melhores, numa obra de superlativos: Good Bye, Boy; E o Mundo Não se Acabou; Recenseamento, Uva de Caminhão; Minha Embaixada Chegou; Alegria... Já que estamos falando de se reinventar, a própria tragédia de um suposto fim do mundo é transformada em zoeira, farra e oportunidade para se colocar a libido em dia, pela personagem-protagonista de E o Mundo não Se acabou. Aproveita-se o final dos tempos para se pegar na mão de quem não devia e para se beijar a boca de quem não conhecia. Hoje a gente faz isso com muita tranquilidade, vide os dark roons e as saunas, mas nos anos '30 a coisa devia ser bem mais complicada...

Anunciaram e garantiram que o mundo ia se acabar
Por causa disso, minha gente lá de casa, começou a rezar
E até disseram que o sol ia nascer antes da madrugada
Por causa disso nessa noite. lá no morro, não se fez batucada

Acreditei nessa conversa mole
Pensei que o mundo ia se acabar
E fui tratando de me despedir
E sem demora fui tratando de aproveitar
Beijei a boca de quem não devia
Peguei na mão de quem não conhecia
Dancei um samba em traje de maiô
E o tal do mundo não se acabou

Anunciaram e garantiram que o mundo ia se acabar
Por causa disso, minha gente lá de casa, começou a rezar
E até disseram que o sol ia nascer antes da madrugada
Por causa disso nessa noite. lá no morro, não se fez batucada

Chamei um gajo com quem não me dava
E perdoei a sua ingratidão
E festejando o acontecimento
Gastei com ele mais de um quinhentão
Agora eu soube, que o gajo anda
Dizendo coisa que não se passou
E, vai ter barulho, e vai ter confusão
Porque o mundo não se acabou

Anunciaram e garantiram que o mundo ia se acabar
Por causa disso, minha gente lá de casa, começou a rezar
E até disseram que o sol ia nascer antes da madrugada
Por causa disso nessa noite. lá no morro, não se fez batucada

Acreditei nessa conversa mole
Pensei que o mundo ia se acabar
E fui tratando de me despedir
E sem demora fui tratando de aproveitar
Beijei a boca de quem não devia
Peguei na mão de quem não conhecia
Dancei um samba em traje de maiô
E o tal do mundo não se acabou

Para o povo brasileiro até o Juízo Final é uma desculpinha... vamos nos divertir... 
A astúcia de Assis continua em Alegria: Minha gente era triste, amargurada / inventou a batucada / pra deixar de padecer... porém, e talvez, no amor Assis Valente não conseguiu se reinventar. Foi para um coronel do exército que ele compôs Fez Bobagem, esse mesmo coronel amado tanto por Assis, levou-o ao suicídio. Nossa história sempre impediu que se conhecesse a vida particular dos nossos ídolos e artistas, quando eles eram homossexuais.

Muitas vezes sabe-se tudo de um deles, menos da sua homossexualidade, fator que só vem à tona depois de muito trabalho de pesquisadores e historiadores comprometidos com a verdade, vide Mário de Andrade, entre outros. Mesmo assim, não se consegue a riqueza de detalhes, tudo encoberto pelos véus do preconceito. Não é conveniente para a História e para o país que tenham existido grandes artistas brasileiros homossexuais, seria uma forma de nos conferir humana validade. Então, penso que temos a obrigação de resgatar isso, o que é mais uma forma de reinvenção.

Assis tentou também chamar a atenção do "primeiro mundo" dominador e imperialista para a nossa riqueza cultural e humana, mostrando em Brasil Pandeiro, numa letra inquietante e provocadora, que se o Tio Sam resolvesse olhar mais para nós, essa gente bronzeada, poderia crescer em humanidade, em emoção e em alegria. Teríamos muito a ensinar ao povo do norte, caso o desprezo deles conosco acabasse um dia. Uma utopia, talvez...
Chegou a hora dessa gente bronzeada mostrar seu valor,
Eu fui à Penha, fui pedir ao Padroeiro para me ajudar,
Salve o Morro do Vintém, Pendura a saia eu quero ver,
Eu quero ver o Tio Sam tocar pandeiro para o mundo sambar...

O Tio Sam está querendo conhecer a nossa batucada,
Anda dizendo que o molho da baiana melhorou seu prato,
Vai entrar no cuzcuz, acarajé e abará,
Na Casa Branca já dançou a batucada de ioiô, iaiá...

Brasil, esquentai vossos pandeiros,
Iluminai os terreiros que nós queremos sambar.
Há quem sambe diferente noutras terras, outra gente,
Num batuque de matar,
Batucada, batucada, reuni nossos valores
As historinhas e cantores,
Expressão que não tem par, ó meu Brasil!

Brasil, esquentai vossos pandeiros,
Iluminai os terreiros que nós queremos sambar
Ô, ô, sambar, iêiê, sambar...
Queremos sambar, ioiô, queremos sambar, iaiá!


Mais orgulho, impossível. 
O Natal se aproxima agora. Uma festa religiosa, cristã, que nos remete a coisas como o nascimento de Jesus, família, amor, compreensão, presentes e... felicidade. Nada disso Assis Valente teve. Esse menino que foi Assis, julga-se no direito de pedir ao Papai Noel, sua autoridade máxima aos olhos da infância, não um caminhãozinho de madeira ou uma bola, mas nada menos do que sempre falta a todos e todas: Felicidade... talvez mais um brinquedo de papel. Boas Festas é, para mim, a mais bela e triste canção natalina já feita. Se você for minimamente humano, vai chorar ao prestar a atenção nessa letra soberba encaixada na canção perfeita. Eu não posso nunca pedir o que eu mais quero, além de ser ousadia demais, é ingenuidade pedir “o brinquedo que não tem”. Por mais que os sinos gemam... Papai Noel já morreu e hoje nossas lutas são outras, para muitos essa luta se traduz em apenas uma coisa: sobreviver. Sobreviver num mundo de guerras, de presidentes e presidentas insensíveis, de frágeis conquistas e de muitas perdas, de amores indo embora e de nossos corações sendo transformados em pedra. E, no nosso caso, a sobrevivência já é uma reinvenção.

Mas há o cansaço que chega. E chegou para Assis. Tentou o suicídio três vezes. Por causa do tal coronel. Na primeira, cortou os pulsos. Foi salvo por amigos. Salvo? Na segunda, se atirou do alto do Corcovado. Caiu sessenta metros e ficou preso nuns galhos,depois foi resgatado por bombeiros. Na última, atingiu seu objetivo bebendo, em frente ao mar na Praia do Russell-RJ, guaraná com formicida. Brasileiro até nessa hora. Assis Valente foi mesmo a reinvenção da reinvenção da reinvenção. Até onde pode. Era 10 de março de 1958 e ele tinha 47 anos. Morreu às 6 horas da tarde. Ainda viu um pôr-do-sol soberbo, como são os crepúsculos no Rio de Janeiro. Penso que o tal coronel do exército não se sentiu nem um pouco culpado.
Boas Festas
(Assis Valente) 


Anoiteceu, o sino gemeu
E a gente ficou feliz a rezar
Papai Noel, vê se você tem
A felicidade pra você me dar
Eu pensei que todo mundo
Fosse filho de Papai Noel
E assim felicidade
Eu pensei que fosse uma
Brincadeira de papel
Já faz tempo que eu pedi
Mas o meu Papai Noel não vem
Com certeza já morreu
Ou então felicidade 
É brinquedo que não tem




Comentários

  1. Ainda nem li - mas obrigado por falar dele, contibuir para a presenrvação da memória de uma das figuras mais fascinantes história da MPB, da cultura brasileira em geral. Se eu tivesse condições, tinha até vontade de fazer uma ampla pesquisa sobre ele e eu um romance biográfico - o que é altamente improvável que um dia eu consiga. Talvez por isso mesmo, aplaudo e sou grato por toda e qualquer contribuição ao resgate da sua história!

    ResponderExcluir
  2. Muito show! Um dos compositores que mais gosto, mas que não conhecia nada da sua vida... super bacana!

    ResponderExcluir
  3. Adorei seu texto, Júlio! Uma bela homenagem! Eu também pouco conhecia sobre esse espetacular compositor. Mesmo conhecendo muitas de suas canções. Valeu!

    ResponderExcluir
  4. Christian Petrizi querido, o texto não é meu, mas sim do nosso grande amigo e colaborador Ricardo Rocha Agueiras. Falha minha que não tinha colocado a autoria, mas já fiz a correção. E um super obrigado pelo elogio, sei que ele em breve irá te responder também, abraços.

    ResponderExcluir
  5. ricardo aguieiras29/10/2012, 15:18

    Quero agradecer a todos os comentários, do Ralf, do Ednilson,do Christian e do Júlio, agradecer por que ele me cede este espaço que acabou sendo o mais importante para mim, de tão valioso, onde ele faz um trabalho tão bonito e tão importante. Precisamos, sim, resgatar nossa História LGBT, tão convenientemente esquecida, resgatar nossos ícones e nossos verdadeiros heróis e heroínas. Beijos e obrigado, amo vocês!!!
    Ricardo Aguieiras
    aguieiras2002@yahoo.com.br

    ResponderExcluir
  6. Parabéns pelo emocionante e educativo texto!
    Aqueles que terão mais um Natal sem presentes agradecem a doce lembrança!

    ResponderExcluir
  7. Adoro Assis Valente! Sou pesquisador e apaixonado pela música brasileira. Estudo canto há alguns anos e, a música que me escolheu foi a brasileira: Bossa Nova, Tom, Tropicália, etc, etc. Tenho um sonho que é cantar em algum "sarau" "E o Mundo Não Se Acabou".
    Abraço José Solon

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Comentários ofensivos não serão aceitos!