O vivo e o morto


Por: Ricardo Rocha Aguieiras

Talvez herança materna, eu nunca me conformei com a morte. Sou rebelde até na não aceitação da nossa única certeza... E nisso eu peco e sou incoerente, pois eu mesmo entendo que todos nós temos muito a aprender com a morte. Kazuo Ono, o mestre da arte Butô, dizia que a morte só era ruim por que embutia o esquecimento. Se nos lembrarmos sempre dos nossos mortos, tudo pode ter uma dimensão mais aceitável.. mais ampla e mais confortável.

Mas a morte nos remete a outros questionamentos, doloridos, talvez por isso fujamos tanto dela. A morte Joga todos na efemeridade da vida, deixa claro o pouco tempo que temos para todos os nossos projetos. Sim, a vida é curta demais...

Outro dia eu fiquei sabendo que Raul morreu. Conheci-o tão pouco, o suficiente para quase me apaixonar... Militávamos na mesma ONG e Raul era o único a ter posições claras e nem um pouco "otimistas" ou "positivas" sobre ter Aids ou ser soropositivo. Ele vivia quebrando o pau com os medianos, com os que acham que o HIV é a sétima maravilha do mundo: "ah, sou tão mais feliz agora"; "descobri o sentido da existência"; "agora sei me cuidar"; me fiz respeitar..." e etc.etc.etc. Nada contra. Até acho muito legal a gente aprender e tirar proveito da dor, além da deliciosa transgressão que é reverter o definitivamente ruim em algo definitivamente bom. Mas, infelizmente, isso é raro. A maioria segue a moda do otimismo barato que nivela todas as nossas emoções hoje em dia.

Para Raul, ter Aids era bem ruim. Ele foi um homem lindíssimo, morou na Europa inteira e principalmente na França, aonde chegou a ser modelo da Maison Dior. Estudou pintura na Áustria e fazia isso muito bem, algumas exposições conceituadas mundo afora. Pegou também a época anos '70, de total liberação sexual, onde seu torneado corpo e seu rosto viril faziam sucesso nos clubes do submundo. Muita droga, sexo e rock’n’roll, algumas baladas mais pesadas no meio disso tudo. Claro que eu compreendo que, para um homem belo como ele e que sempre foi valorizado exclusivamente por isso, os efeitos da Aids podem ter sido devastadores, tanto fisicamente como psicologicamente. E pior: ele ficou muito doente bem antes do surgimento do coquetel e dos remédios e sobreviveu a tudo, mas com sequelas...

Porém, era uma delícia ouvir Raul, sua brilhante inteligência e a autenticidade, sua coragem de vomitar o que os outros não queriam ver. Eu adorava até as brigas que ele provocava, a sua revolta contra o comodismo, sua ausência de escrúpulos ao denunciar a hipocrisia e o moralismo dessas ONGs. Assim era Raul. Nele não existia a vítima, nunca fez esse papel tão adorado nesses grupos. Ao contrário, seu nojo à toda auto-comiseração era munição para sua metralhadora giratória.

E, se ele já não tinha a beleza de outrora, pra mim continuava muito lindo, mesmo magro, mesmo com a pele manchada, mesmo com a lipodistrofia que ele gastava fortunas para combater. A visão do olho esquerdo ele já tinha perdido por ter participado de um imoral e indecente protocolo que uma multinacional farmacêutica fez, onde aplicaram uma mundialmente condenada monoterapia em voluntários.

Uma noite, juntos, ele, minha irmã e eu bebendo até altas horas no Vermont, rindo muito com as coisas que ele contava pra gente, suas aventuras sexuais em ordinários cabarés do leste europeu. Depois trocamos alguns beijos mais ousados e algumas carícias ainda mais e cada um foi pro seu canto. Ao perceber que eu já estava quase apaixonado por ele, pus o pé no freio: "Não posso, ele é um drogado, ele já tem um envolvimento de anos, chega de problemas.... ." Assim me avisava meu alterego. E eu não me entreguei. Afastei-me, fui defender outras bandeiras, fui expulso da tal ONG, um tempo depois fiquei sabendo que ele também tinha sido, afinal, nessa ONG só era permitido depoimentos "pra cima", otimistas, não se podia falar da dor, era negada...

E, outro dia fiquei sabendo que ele morreu. Me falaram assim, na lata: "sabe quem morreu? O Raul... depressão...não queria mais lutar". E, nesse momento, o meu interlocutor não sabia que Raul morreu não por não saber ou não querer mais lutar, mas sim por que a morte foi para ele a única forma que restou para ainda lutar. Alguns manifestam a vida, o desejo e a força política até quando morrem. Assim era Raul. Aquele que eu não amei... Medo, afinal era um drogado, um provocador, um ríspido, um corajoso, um autêntico. Ao lado dele eu só encontraria problemas... Será? Não sei. Não sei. Pode ser mesmo que sim. Mas pode ser, também, que hoje eu fosse alguém mais completo se tivesse me entregado.


Comentários

  1. Adorei esse texto. Comovente! Carlos Magno

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  2. RICARDO AGUIEIRAS08/10/2012, 11:40

    Obrigado, Carlos Magno!!! Carinho pra você!!!!
    Ricardo Aguieiras
    aguieiras2002@yahoo.com.br

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