Uma das imagens mais trágicas da solidão moderna é aquela do idoso passeando pelas ruas apenas acompanhado pelo seu cachorrinho.
"Como tenho pensado em ti,
na solidão das noites úmidas/
De névoa úmida/
Na areia úmida..."
Manuel Bandeira, in Estrela da Vida Inteira
Ainda no início de 1980, o Grupo Somos de Libertação Homossexual promoveu um encontro e, dentro dele, uma oficina sobre homossexualidade e solidão. Chegamos a uma conclusão animadora para a época: A nossa solidão, a solidão dos gays masculinos é política. Falo "gays masculinos" por que as lésbicas participaram, sim, do Encontro, mas não dessa oficina especificamente. Ou seja, na medida em que supostamente avançaríamos nas nossas conquistas e direitos, essa solidão tenderia a diminuir. Iria adquirir os mesmos contornos existencialistas da solidão de um heterossexual qualquer. E, quem sabe nós, gays, com a força do nosso amor e desejo não iríamos ensinar toda a sociedade novos instrumentos de combate a essa dor tão doída chamada solidão. Dor muitas vezes medonha, como cantava o Ney Matogrosso.
Quero aqui refletir apenas, levantar hipóteses junto com você.
Eu ainda acredito que o reconhecimento legal da homossexualidade e a diminuição do preconceito trará benefícios e afirmarão nossas amizades, amores e companhias. Mas, hoje, contraditoriamente, não é o que vejo. Estamos, cada vez mais, sós.
Uma das imagens mais trágicas da solidão moderna era aquela do idoso passeando pelas ruas apenas acompanhado pelo seu cachorrinho. Essa fotografia já foi decantada por muitos poetas, inclusive pelo nosso Cazuza, em Só as Mães são Felizes. Eu lia muito sobre a Suíça, a Suécia e os países nórdicos a respeito de como haviam conseguido superar a maior parte dos problemas econômicos e oferecer às pessoas um invejável nível de vida financeiro e social. Mas eles não conseguiam acabar com isso, com a solidão dos seus habitantes, cada vez mais isolados em excelentes moradias, excelentes planos de saúde e aposentadorias, excelentes e exemplares democracias e, sós. Sós na excelência de seus animaizinhos de estimação. Não se comunicam com seus vizinhos e lá o céu quase sempre é cinza. Solidão pode ser também uma forma de acinzentar nossos corações. Ou mais, solidão é a consequência de termos já acinzentado nossos corações.
Sim, bem sei que a solidão é um preço a se pagar pela nossa liberdade e autenticidade. Mas liberdade também é questionamento. Lembro-me de quando eu ainda era um menininho, sentava com minha mãe e ficávamos olhando as fotos dos belos artistas de fotonovelas italianas, na revista Grande Hotel. Editora Vecchi, fundada por italianos e forte concorrente da Abril, dos Civita. Mas a Vecchi não existe mais, infelizmente. Naquela época, um artista era considerado belo pelo seu rosto. Quase ninguém comentava o corpo. O rosto, por ser o repositório das nossas emoções, me foi ensinado como um valor maior. Maior e definitivo. O que carregava um rosto? Os olhos traduziam um universo, a gente tinha até que tomar cuidado ou poderíamos ver a alma do outro pelos olhos, ou revelar a nossa. Pela boca saíam palavras. E palavras apaixonam. Ainda tinham os ouvidos para ouvir tudo, inclusive nossas fofocas e nossos segredos, tinha o cérebro para criar e... felicidade suprema: tinha, no rosto, uma barba por fazer que me fascinava o roçar. Isso era o rosto. O mesmo que, com o tempo, perdeu muito do seu valor, emoções saíram de moda e tornaram-se inconvenientes num prático mundo globalizado, internatizado; preconceitos mais sutis (mais cruéis, também...) e que carrega uma contradição grave, pois com o avanço da Ciência e das descobertas medicinais nós vivemos mais, se vivemos mais envelhecemos mais e, na ausência das emoções acabamos sendo considerados descartáveis, algo mesmo para ser deixado de lado, segurando a corrente de um cachorrinho. O rosto, nossa foto na carteira de identidade, revelará nossas rugas e nossos cabelos brancos. Essas marcas lembrarão ao próximo que ali poderia existir alguém que um dia qualquer se emocionou e se emocionou muito, como emoções perderam o sentido e finalidade social, não queremos ver isso, nem admitir isso, seria uma possibilidade de uma existência plena, plena, portanto envolve riscos. E agora queremos viver sem riscos. Deixamos de envelhecer e de morrer, em reverência à sociedade de imagens.
Mesmo entre os homossexuais, nos anos setenta não havia esse papo de ditadura da estética e o hedonismo exacerbado do culto ao corpo. Quando comentávamos entre nós da beleza de alguém estávamos nos referindo ao rosto. Para corroborar essa minha tese basta você alugar um filme pornô gay antigo e veja que os corpos não eram tão malhados como os de hoje e os tipos eram mais "comuns", do nosso dia-a-dia, um rosto belo tinha um enorme valor mesmo que viesse junto com um corpo não "perfeito".
Anos e anos se passaram e construímos "caixas" (seriam caixões, túmulos?) cujas paredes tem buraco, os famosos glory holes, onde tudo é bem simples: você coloca o valorizado pênis lá, ou o cu ou a boca. Agora, a boca não irá falar nesse lugar, irá chupar. Darks rooms não seriam os túmulos das emoções? Mutuamente não se vê o rosto (muito menos as emoções, podem ocorrer alguns gemidos. Gemidos muito altos não são bem vindos), não se sabe o nome e muito menos o que pensa o sujeito da parede ao lado. Quando entramos em uma sala de sexo virtual não se fala mais, no apelido, se os olhos são pretos, castanhos ou verdes. Mas o tamanho do pau ou se somos "passivos" ou "ativos". Não sei não, mas acho que alguém/muitos perdeu/perderam muita coisa nessa...
Mas voltando à fotografia do idoso com o seu cachorrinho, já tão batida pelos poetas, os fotógrafos da alma; o que eu fui vendo foi que o tal gay "idoso" foi sendo gradualmente substituído por outros cada vez mais jovens. E cada vez mais individuais, rostos fechados. De quantos e quantos gays eu ouvi a triste declaração de que "preferem confiar num animal do que num ser humano". Ou "animais são leais e confiantes, nunca vão te trair". Etc. e etc. Conheci um homossexual que tinha sete gatos em sua casa. Só conseguia se comunicar com eles, pelos bichos ele tudo fazia, mas nunca havia namorado seriamente ninguém em sua vida. E, para não viver, para não sofrer riscos e nem se entregar, preferia amar os gatos.
Sempre morei no centro de São Paulo. Andava muito pela Av. São Luis, velhos com seus cachorrinhos e gatos. Ainda ando pela São Luis, hoje, jovens com seus cachorrinhos e gatos. Há ainda os que só amam as plantas. E meditam: "elas não mijam nem cagam fora do lugar...". Jovens homossexuais...
Ok! A solidão é a condição humana. Nem sempre estar só é ruim, pode ser o contrário já que cada ser é único e extraordinário, rico em suas nuances e em sua existência. Mas ela não pode, jamais, ter sido provocada pelo medo. Medo da entrega, medo do outro, medo dos preconceitos, medo de amar e de viver. Parece que quando mais deveríamos olhar o próximo, quando há luz, não olhamos e fazemos o nosso já tradicional "carão". Esperamos escurecer e aí procuramos olhar, mas sempre a região abaixo do pescoço. Ah, os óculos escuros, hoje, são mais um objeto de desejo...
Agora, péra aí! Posso garantir a você que no dia em que a homofobia for criminalizada, no dia em que o Casamento Homossexual for aceito com naturalidade e respeito, no dia em que eu puder cantar um cara com um sorriso e até falar algumas bobagens no ouvido dele, em plena rua e sem que isso signifique um risco de morte para mim, como não é para qualquer machão hétero, posso te garantir que vou me sentir muito melhor na minha "existencial" solidão. Portanto, a solidão dos gays, a despeito dos trinta anos passados daquela oficina do Grupo Somos, continua política. E é pela política que poderemos mudar algo. Se bem que olharmos o rosto do outro de cabeça erguida e trocar algumas palavras com ele deixando um pouco as defesas de lado pode ajudar um tanto. Ainda há fogo sob as cinzas e ainda há muita poesia até nos olhos daquele que se esconde atrás dos óculos escuros. A gente vai ter que insistir, procurar. Mas será altamente recompensador.
Excelentes considerações, como sempre, Ricardo! A solidão faz sofrer, sim. E nos (estou no iPad, sem acento) somos os responsáveis por ela, na medida que insistimos na ditadura do corpo e do pau, na medida em que continuamos privilegiando a quantidade e não o envolvimento, seja por que motivo for, e enquanto tivermos medo na alma, medo do hetero e medo de nos mesmos. Parabéns!
ResponderExcluirDesculpe, não tenho iPad e não entendo absolutamente - creio que entendo o suficiente - nada das modernas tecnologias mas, que eu saiba, já existe o chamado 'teclado universal' adaptável a todos os idiomas e com todo tipo de acentuação (segundo me informaram, basta que programemos em nossos PCs a configuração do teclado), ao menos para os computadores. Será que esse mecanismo ainda não chegou aos iPads, iPods e similares, existindo apenas nos PCs?
ExcluirBom texto, Ricardo, achei-o bem filosófico, dá o que pensar. Até pensei em escrever e publicar uma resposta, também dissertando sobre a solidão (de uma maneira geral), mas não sei se sou filósofo à altura.
ExcluirQuero agradecer muito ao grande escritor Christian Petrizi, amigo e sempre estimulante em suas palavras. Um beijo! E Pangéia, obrigado! Visitei seu blog e o adorei, sim, você também é um "filósofo" à altura e escreve muito bem. Adorei te conhecer! E adorei também ler lá o surpreendente e raivoso, lindamente raivoso desabafo do meu adorado Júlio Marinho, lá. O Júlio esconde o jogo, mas ele também é um dos melhores escritores que conheço...
ResponderExcluirRicardo Aguieiras
aguieiras2002@yahoo.com.br
Lindo!
ResponderExcluirLindo texto.
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