Pesquisas analisam espaços de sociabilidade LGBT

A discussão sobre diversidade sexual tem ganhado destaque em diversos setores da sociedade: dos Poderes Legislativo e Executivo até as telenovelas. A temática chegou às universidades. Na Universidade Federal do Pará (UFPA), recentemente, duas dissertações foram defendidas no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, área de concentração em Antropologia, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Instituição. Uma delas é intitulada Encontros e desencontros: uma etnografia das relações entre homens homossexuais em espaços de sociabilidade homossexual de Belém, Pará, orientada pela professora Cristina Donza Cancela.

"O trabalho procurou compreender como é que se dava a dinâmica das relações entre homens homossexuais nas boates Lux e Malícia, as quais eram e ainda são dois importantes espaços de sociabilidade gay em Belém", diz Ramon Pereira dos Reis, antropólogo, autor do trabalho.

Para traçar esse panorama, Ramon Reis visitou, sistematicamente, de agosto de 2010 a agosto de 2011, os dois lugares de lazer e sociabilidade, os quais funcionavam, na época da pesquisa, no bairro Reduto, na capital paraense, e eram separados por apenas um quarteirão. Nas boates, o antropólogo observou os comportamentos e os perfis dos sujeitos. Essas observações, segundo ele, foram realizadas baseadas em aspectos interseccionais, a saber: geração ou idade, classe social e performatividade de gênero, que é a forma como os indivíduos manifestam a sua identidade de gênero, entre os polos masculinos e femininos. Estabilidade financeira é requisito valorizado

A boate Malícia era frequentada por médicos, advogados, jornalistas e publicitários, sujeitos que exerciam profissões valorizadas. "A Malícia era considerada um ambiente ‘fino’, exemplo de sofisticação e bom gosto. Nela, transitavam as chamadas ‘bichas finas’, consumidoras de grifes,  que procuravam manter a discrição", reforça Ramon Reis.

Uma situação recorrente é a constituição do "parceiro em potencial". De acordo com essa categoria, se um homossexual, frequentador de um dos espaços, não estiver dentro do padrão de beleza convencional, mas, se for estável financeiramente e possuir bens materiais, como um carro, torna-se um "parceiro em potencial". Essa situação configura-se porque esse indivíduo, detentor de poder aquisitivo, passa a ser um chamariz para quem está em busca de parceiros, para relacionamentos duradouros ou efêmeros.

A busca por parceiros foi outra questão que acompanhou o autor durante a pesquisa. "Entre os nove entrevistados, apenas um reconheceu que o principal motivo para ir às boates era a oportunidade de encontrar alguém para namorar. Os demais interlocutores tentavam camuflar essa intenção, argumentando que a possibilidade de dançar e encontrar amigos era o que chamava a atenção nesses ambientes. A busca por parceiro, quando mencionada, era sempre a última resposta. Contudo percebia-se a sensação de felicidade e recompensa por ter encontrado um par", finaliza Ramon Reis.
Circuito envolve bairros centrais e periféricos de Belém

A Dissertação Na rua, na praça, na boate: uma etnografia da sociabilidade LGBT no circuito GLS de Belém-PA, de autoria do antropólogo Mílton Ribeiro da Silva Filho, foi orientada pela professora Carmem Izabel Rodrigues. "Neste trabalho, procurei perceber como se davam as vivências, os estilos de vidas específicos e as formas de interação entre homossexuais e afins nos espaços de sociabilidade LGBT de Belém", explica Mílton Ribeiro.

Durante a pesquisa etnográfica, o antropólogo visitou e observou o circuito comercial GLS que existia em Belém, no período de 2010 e 2011. Integravam esse circuito seis boates: Malícia Hot, Lux Dance Pub, R4 Point, Rainbow Club, Boate Vênus e Hache Clube; além de dois bares, Veneza e Refúgio dos Anjos. Esses lugares de lazer localizavam-se esparsamente pela capital paraense, em bairros centrais e periféricos.

"Quando um indivíduo amplia a sua rede de sociabilidade, ele passa a adquirir outros estilos de vida. No caso da sociabilidade no circuito GLS, os novos integrantes passam por um processo de aprendizagem, assimilando códigos e referências ali circunscritas. Assim, esses sujeitos reconstroem a si mesmos", considera.

De acordo com Mílton Ribeiro, uma das principais características desses ambientes é a prática do Bajubá, uma espécie de código linguístico, composto por um conjunto de gírias e expressões. "Dentro do circuito GLS, é quase impossível alguém se sociabilizar sem conhecer o mínimo de códigos dessa rede, como o Bajubá", destaca. Ao frequentar sistematicamente esses espaços, cada indivíduo passa a construir o seu "eu gay" a partir da rede de que faz parte, dos lugares que frequenta e dos bens que consome. O pesquisador explica que esses fatores simbolizam e determinam que "tipo" de homossexual cada um é. Entre os bares visitados, o "Refúgio dos Anjos", localizado no Guamá, é considerado um lugar "bagaceiro". Já o Bar Veneza, localizado num bairro mais central, é classificado como um local "fino", sofisticado, de bom gosto.

As entrevistas deram ênfase às histórias de vida de sete interlocutores: quatro gays, um bissexual, uma mulher transexual e uma lésbica. O ponto de partida eram perguntas mais formais para traçar um perfil socioeconômico e cultural dos entrevistados. Posteriormente, os interlocutores discorriam sobre trechos da sua história de vida, abordando questões como criação, o ingresso nos espaços de sociabilidade LGBT e as primeiras experiências sexuais. Outro ponto discutido nesta etapa era o processo de coming out, que significa "sair do armário", momento em que um LGBT assume sua orientação sexual ou de gênero.

"Busquei saber como esses sujeitos foram constituindo-se em novos sujeitos. A relação com o ‘armário’ foi citada por todos como uma das barreiras enfrentadas, em algum momento, ao longo das suas trajetórias. Todos os interlocutores também construíam, pelos seus discursos, uma visão romanceada das suas biografias, repleta de altos e baixos", revela.

O pesquisador diz que trabalhos acadêmicos como essa temática precisam ser produzidos com mais frequência e ter mais visibilidade. "Fazer parte de uma geração que começou a produzir essas pesquisas com mais volume na UFPA, no Pará e na Amazônia é difícil e, ao mesmo tempo, valioso. Com essa semente plantada, espera-se que esses estudos ganhem volume e qualidade contínua", conclui.
A busca pelo parceiro ideal

Aspectos como idade, classe social e  performatividade podem influenciar nas escolhas e expectativas dos frequentadores dos dois ambientes. "A intenção era constatar se o fato de um homem homossexual frequentar a Lux ou a Malícia tinha ligação direta com a busca por parceiros", complementa Ramon Reis.
A fim de ilustrar e enriquecer a sua análise, o pesquisador abordou pessoas nos dois ambientes, com as quais manteve conversas informais. A partir disso, realizou a "etnografia da intimidade", entrevistando –  em momento e lugares diferentes – nove frequentadores.

O critério de seleção dos interlocutores se deu a partir da variação sociocultural. Foram entrevistados negros, brancos, novos, velhos, de diversas classes sociais e performatividade de gênero.  Assim, seria possível entender como os frequentadores se movimentavam no "trânsito homoerótico", traçando estratégias para atrair determinado indivíduo, na busca por um parceiro ideal.

O antropólogo diz que as duas boates apresentavam nítidas diferenças entre si. "A Lux era concebida como um lugar desvalorizado, ‘bagaceiro’ e prestigiado pelas chamadas ‘bichas pererecas’. Esses frequentadores eram jovens, residiam em bairros periféricos, apresentavam performatividade de gênero predominantemente feminina e possuíam baixo poder aquisitivo. Diante dessa condição, essas pessoas apenas podiam consumir produtos populares e tinham dificuldade de acesso a outros bens. Esse conjunto de fatores conferia à Lux um status negativo", considera o pesquisador.

Fonte: DiárioOnline

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