Obama e o casamento gay

As declarações até certo ponto surpreendentes do presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, endossando o casamento entre pessoas do mesmo sexo (dia 9 de maio) vem suscitando interpretações as mais variadas. Do lado negativo, há quem considere a tomada de posição inócua porque Obama não se dispõe a promover uma legislação federal a esse respeito, deixando a questão à competência dos Estados. Estes, em grande maioria, desaprovam o casamento gay. A constatação é verdadeira no plano dos fatos materiais, mas esquece a ampla dimensão simbólica da fala presidencial. Quaisquer que sejam as implicações de curto prazo, Obama passará à História como o primeiro presidente a apoiar o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Cabe lembrar também que o respaldo presidencial colocará a controvérsia, mais ainda, na ordem do dia.

Há quem afirme que esse pronunciamento resultou de pressões exercidas pelo impetuoso vice-presidente Joe Biden, figura política que bem representa a ala populista do moderado governo Obama. Dias antes, Biden fora à televisão para apoiar o casamento gay, embora, curiosamente, tenha pedido desculpas ao presidente por suas declarações horas antes de Obama fazer seu pronunciamento. Seria injusto afirmar que Obama agiu como decorrência de pressões à sua volta. Ao longo de seus quase quatro anos de governo, ele não ignorou o tema da igualdade dos direitos civis, aí incluídos os direitos dos homossexuais. Foi ele quem tratou de pôr fim à discriminação no âmbito das Forças Armadas; foi ele quem, no ano passado, decidiu não exigir, perante os tribunais, o cumprimento de uma lei federal, assinada por Bill Clinton, que define o casamento como a relação entre um homem e uma mulher.

Indo adiante, há quem considere tudo um jogo de cena, com o objetivo de produzir efeitos eleitorais positivos, com vista às eleições de novembro próximo. Afirmação combinada com o fato de que são gays muitos dos grandes contribuintes da campanha do atual presidente. Se esta última hipótese parece desproporcionada, a primeira é difícil sustentar. Negros e latinos se opõem em maioria ao casamento gay, assim como muitos católicos e evangélicos. Mas, ao mesmo tempo, é certo que o pronunciamento de Obama terá efeitos positivos na atitude dos votantes americanos menores de 30 anos, que majoritariamente, num porcentual em torno de 60%, apoiam ou aceitam o casamento entre pessoas do mesmo sexo.

De qualquer forma, o presidente não deu um prato cheio aos adversários republicanos. Mesmo porque entre 50% e 55% da população americana, segundo as pesquisas, apoia ou aceita o casamento gay. Há também aqueles que ficam em cima do muro, o que equivale a não se opor à ampliação do conceito de casamento. É o caso, por exemplo, de um eleitor de Mitt Romney, de 70 anos, zelador de profissão, citado nas páginas do jornal The New York Times: "Não é comigo. Não precisamos falar sobre disso. Não sei dizer se sou a favor ou contra. Não sei o que meus netos serão".

Os dirigentes do Partido Republicano, num primeiro momento, preferiram não dar maior importância ao pronunciamento presidencial, considerado em alguns círculos conservadores como uma manobra para desviar a atenção do eleitorado de temas mais sensíveis, em especial o desemprego e a situação econômica em geral. Logo, porém, as diversas organizações da direita, assim como os assessores de Mitt Romney, perceberam que as declarações presidenciais precisam ser incluídas como um tópico importante da campanha, quanto mais não fosse, para que o candidato republicano ganhasse o voto evangélico, reticente diante do fato de ele ser um mórmon. Embora seja cedo para constatações definitivas, não parece, entretanto, que a questão tenha papel decisivo na escolha dos eleitores, independentemente de sua grande repercussão social.

É compreensível a ênfase que se tem dado à inclinação à direita da política americana, assim como à crescente influência de correntes religiosas, nas decisões de um Estado definido como leigo. De fato, figuras retrógradas passaram a ditar a linha do Partido Republicano; e as correntes religiosas ganharam força, borrando, por vezes, a linha divisória entre as igrejas e o Estado, tudo culminando com os oito anos do governo de George W. Bush. Entretanto, a onda do conservadorismo social não chegou a dominar a sociedade americana. Uma tendência significativa, sustentando valores e princípios libertários, ganhou forças, ao longo dos anos. A união estável e o debate sobre o casamento entre pessoas do mesmo sexo são um bom exemplo das transformações que vêm ocorrendo nos Estados Unidos. Basta retroagir dos dias de hoje ao ano de 1973. Foi só em dezembro daquele ano que a Associação Americana de Psiquiatria eliminou de seus documentos oficiais a menção à homossexualidade como doença mental tratável.

Vale a pena ressaltar as razões que Obama arrolou em sua fala, para explicar porque evitara lançar, até aqui, um pronunciamento em favor do casamento entre pessoas do mesmo sexo: "Eu hesitei na questão do casamento gay porque pensei que uniões civis seriam suficientes. Era sensível ao fato de que, para muita gente, a palavra casamento era algo que invoca poderosas tradições e crenças religiosas".

Jogada de efeito diriam os inimigos, que os há em grande quantidade, assim como os céticos. Para mim, um líder político precisa ter coragem para fazer essa afirmação, a poucos meses das eleições presidenciais, com um tom pessoal que inclui a hesitação, o respeito por convicções arraigadas. Muita gente parece não se dar conta do fato de que, se a representação de interesses poderosos domina a política americana, os princípios ainda valem, em questões cruciais.

Fonte: Estadão

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