Sobre Armários, Cômodas e Penteadeiras...

Por: Ricardo Rocha Aguieiras


Há os grandes enrustimentos e os pequenos, minúsculos enrustimentos. Todos nos trazem as grandes e as pequenas dores, essas últimas são cotidianas.

Recentemente, em uma lista de discussão LGBT,  na Internet, ouve um debate bastante acalorado sobre o outing, ou seja, o ato político de denunciar famosos (ou não), que escondem sua homossexualidade e vivem o enrustimento. De lado a lado havia opiniões e gente muito importante falando seus fortes argumentos contra ou a favor. Confesso que fiquei até confuso. Entre as dúvidas, duas imperavam: Alguém tem o “direito” de ser enrustido? Alguém tem o direito de denunciar o outro?

Como sou um comum mortal e meus amigos também, pude presenciar em minha vida o quanto é importante a saída do armário, a carga de felicidade que essa atitude traz para todos – incluindo aí os que cercam o recém liberto -, além de imprimir coragem para que outros e outras também abram as portas de sua sexualidade e amor. A identidade sexual de alguém é algo tão importante na minha visão, que não vejo sentido em mantê-la trancafiada. Pela importância imensa, como me é possível acreditar num ser que a esconde, ou seja, quem esconde a sexualidade, será que esconderá só isso ou o seu armário é tão grande para abrigar toda a sua personalidade e os seus sentimentos infelizmente escamoteados ao porão da alma?  Eu pergunto: como poderia, então, confiar num enrustido?

As pessoas “contra” argumentavam que denunciar a homossexualidade de alguém seria uma forma de impor um castigo a essa pessoa. É para se pensar... E as que eram a favor, perguntavam como é que pode alguém gozar – escondido – das delícias do amor entre iguais, mas não dizer uma única palavra em favor dos direitos dos LGBT’s.

Eu poderia citar aqui um monte de nomes e exemplos, mas estaria praticando um outing e já falei que estou confuso. Eu quero pensar por um outro viés.

Quantos de nós, você e eu, gays, lésbicas, travestis, trans;  não sofremos o dedo em riste, isso desde muito pequenos, apontados nas ruas, na escola, nas festinhas? Por coleguinhas da mesma idade.  Quantos adultos também não aproveitaram a deixa ao cruzarem com o seu pai ou sua mãe pelo caminho, para, com a “melhor das intenções”, comentarem do “jeitinho estranho do seu filho ou da sua filha...”. Eles, os heterossexuais, podem? Ou isso, que sofremos a vida inteira, também não seria outing, também não seria uma denúncia, uma deduragem em cima da gente? Qual heterossexual que me denunciou na vida estava preocupado se isso, se essa denúncia, iria ou não me prejudicar? Desculpem, mas ou eles nem estavam preocupados com isso ou isso não tinha para eles nenhuma importância. Ou ainda, queriam mesmo me prejudicar. Quantos caminhos eu tive que desviar, o coração aos pulos, andar pela estrada muito mais longa, outros quarteirões, só para não cruzar com a turminha da escola que fatalmente me ridicularizaria, por eu ser diferente? Isso não era apenas uma questão de eu não querer ouvir algo desagradável e cruel em cima de mim, mas era uma questão de sobrevivência. Essas histórias são tão velhas e repetitivas, quem de nós não carrega a sua? Antes de ser um humano – que para mim parte da própria admissão da sexualidade – eu fui objeto de escárnio dos outros. E você também foi. E, ... continuamos sendo.

Penso que nós, LGBT’s, já nascemos contra a corrente da sociedade heterossexista, teremos sempre que subir pela escada rolante que desce. E provar que a gente consegue chegar lá em cima. A negação do amor de um pai – ou uma mãe – é uma das coisas mais tristes que se possa vivenciar e muitos e muitas vão carregar essa dor até o fim. No meu caso, o não amor de meu pai minou grande parte de minha autoconfiança. E eu lutei boa parte de minha vida reconstituindo em papelão o que ele, meu pai, derrubou em concreto.  Terei que me conformar com isso, sempre serei um ser coberto de band-aids nas feridas onde deveria ter tido um beijo paterno.

Ok, cresci e não dá para viver choramingando, mesmo por que há tantos iguais a mim, que passaram as mesmíssimas coisas ou ainda piores. Agora, infelizmente, as coisas não pararam no meu pai.

Minha família sempre teve o costume de se reunir inteira nos Natais. Fora um monte de estranhos que aparecem. Pois bem. Num dos últimos de 1990, com mais de quarenta pessoas, num infeliz momento, a minha cunhada – fanática evangélica – resolveu dizer em alto e bom som, para o espanto e perplexidade de todos e todas, “que eu era homossexual e que “a homossexualidade é uma prisão, mas que Cristo e a Bíblia poderiam me libertar disso, como já tinham feito com várias lésbicas na igreja ...”. Claro que todo mundo sabia há muito que eu sou homossexual, afinal me assumi aos treze anos, mas essa “parenta”, além de, mais uma vez denunciar e praticar o tal outing, fez a questão de colocar que perante os olhos de Deus, a homossexualidade seria uma prisão. Minha única reação foi deixar o delicioso peru com molho de amêndoas que minha mãe fez de lado, pegar minha mochila e ir embora, perante uma platéia atônita. E ela, minha cunhada,  ficou com a certeza de que não errou em nada com o que disse e nem que me prejudicou.

Durante anos eu trabalhei num grande jornal de São Paulo, sempre ganhando prêmios e superando todas as metas que me davam. Era visto pelos outros funcionários com um misto de admiração e de inveja. Apesar do machismo reinante eu deixei claro minha orientação desde o primeiro dia lá. Mas...nunca fui promovido, o que seria o verdadeiro reconhecimento da minha dedicação e talento. Um dia, não suportando mais, entrei na sala do meu chefe, um homem culto e dito esclarecido, e o questionei sobre. Ele foi direto, respondeu sem rodeios: “Não posso lhe promover. Todo mundo comenta do seu jeitinho. Aqui a gente te suporta a duras penas, só eu sei o quanto já briguei para te manter. Mas... você poderia ser mais discreto, sair com os rapazes, ir às boates brincar com as meninas, tanta gente faz assim... qual o mal?...Para cada prêmio que eu lhe dou, tenho que aquentar um batalhão na minha sala dizendo que eu protejo um viado...” Esse foi também o meu último dia lá, pedi as contas na hora. Virei as costas, mas sei que esse chefe se sentia muito benevolente em “suportar” a minha homossexualidade. Talvez ele fizesse isso na esperança de garantir o seu lugar no Céu.

Quando morei em Brasília fui proibido pelos pais de um amigo de frequentar a casa dele. E ele foi proibido de ser visto em minha companhia. Afinal, eu, um gay assumido, sem vergonha... Ok! Anos depois, numa sauna de São Paulo, quem eu vejo? Esse mesmo pai do meu amigo, para lá e para cá e, ao me ver , ficou lívido, veio pedir que “eu não falasse nada para o filho dele, que eu tinha que compreender, que ele tinha um importante cargo público” e etc. etc.

Já repararam como os/as heterossexuais são naturalmente orgulhosos de serem o que são? Andam com enorme tranquilidade pelas ruas, com o seu ar de superioridade impressa nas suas demonstrações públicas de afeto, sua segurança de que estão dentro da lei e entre iguais. Nascem; crescem e morrem assim. Vão para o Céu ou para o inferno e lá chegam com a mesma calma e o nariz em pé. Um menino de sete anos que passa a mão na xoxota de uma menina de sete anos é orgulho do pai e da mãe, orgulho da vovó e do titio. Dos vizinhos, idem. Dão risadas e chamam o menino de safadinho. Se ele der uma surra num coleguinha da mesma idade ainda gera mais admiração. E se for bom no futebol, então, nem se fala. Adolescente, já pode beijar no metrô...E assim, a vida continua. Nunca sentiu terror, medo. Nunca terá a ansiedade diária de saber que pode sair na rua para não mais voltar. Nunca será apontado nas praças como “verme” e nem vai ler notícias de assassinatos de heterossexuais só por que eram heterossexuais. Se for morto por um motivo qualquer, intui que o seu assassino será punido dentro da lei, pois há leis para os heterossexuais. Eu já me peguei muitas vezes imaginando um mundo às avessas. Já pensaram como seria o nosso comportamento e a nossa felicidade interna, a nossa paz se nós, LGBT’s, fôssemos realmente livres e respeitados tanto quanto os heterossexuais? Quantas e quantas vezes praticamos o auto boicote no nosso amor, perdendo pessoas por que não acreditamos ter o direito a um mínimo de felicidade? E mesmo que não praticássemos esse boicote, pode deixar que a sociedade heterossexista o faz. Portanto, matamos um leão a cada dia, matamos não apenas um, mas um bando de leões. Fora as cascavéis, as amebas, os crocodilos... Ou seja, somos sempre apontados, delatados, dedurados, outingzados e ridicularizados enquanto portadores do amor e do desejo não vigente , portadores e portadoras de uma imagem que não é considerada nem a certa nem a natural.

As histórias são muitas. E velhas. Você, com toda a certeza também têm as suas. O que eu estou querendo colocar aqui é: temos que ser constantemente prejudicados pelos enrustimentos alheios? Um enrustido não é apenas um enrustido, mas pode ser alguém que luta com unhas e dentes pela manutenção do seu armário embutido, denunciando o outro para afirmar-se em sua heterossexualidade aceita e “sadia”.  E a nossa ausência de orgulho nos torna extremamente vulneráveis a tudo isso, fica muito difícil viver com prazer, a gente se fecha para não sofrer e nisso acabamos perdendo ainda mais: em relacionamentos, na criatividade e na ternura de cada; acabamos criando um outro armário, este bem mais sutil, não apenas pela sexualidade, mas por tudo, digamos uma “cristaleira” para poder chorar lá dentro e sobreviver. O rosto, outrora receptáculo de nossas emoções e empatias, acaba perdendo o sentido, pois tememos a emoção e o amor. Então, tristemente e nos enganando, partimos para a valorização do corpo e do sexo puro e simples. Não mais olhamos nos olhos nem vimos mais a brancura dos dentes num sorriso, para não chorar. Não posso amar, por que nunca me deixaram amar.     

Comentários

  1. Só usei meu armário uma vez para brincar de escode-esconde. Lembro-me de uma outra vez ter usado para esconder um choro, nada mais!
    Tive medos de ficar sempre usando esse recurso do anonimato de minha dor; nem eu sabia a complexa nomenclatura disso!
    Hoje acho que estou muito mais feliz comigo e com os outros que escolhi estarem por perto. Nada além da boa companhia de pessoas tranquilas e saudáveis, cônscia de suas limitações e extensões; e nada além de sua amizade me atrai. Soube juntar ao meu redor as pessoas mais felizes e bem-resolvidas. Todos nós já brincamos de se esconder no armário, e hoje apenas guardamos nossas roupas e lembranças da infância.
    Entremos e saiamos dos armários sabendo o que realmente ele significa!
    Lindo texto Ricardo Rocha. Parabéns!

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  2. o olhar claro e honesto de quem se aceita e a responsabilidade do viver honestamente

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  3. Thiago Valim31/01/2012, 20:57

    Amei esse texto..

    Perfeito..
    Sem palavras..

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  4. Belíssimo texto. Parabéns, acredito que suas palavras tenham expressado a dor de muitos daqueles que não a podem, ou mesmo não a sabem expressá-la... porque sentir - ah! - sentem!

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  5. Alessandro Rodrigues Batista28/02/2012, 20:21

    Sofri junto com o texto, saí recentemente do armário,logo assim que comecei a me relacionar com meu namorado.Meu pai não fala mais comigo, uma pena, para ele.Parabéns pelo texto.

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  6. Tinha que ter cunhada no meio...

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