Por: Ricardo Rocha Aguieiras, em cima de um pequeno artigo de Vange Leonel
O sol, que ainda existia, insistia também em entrar pela janela. Junto com as notícias ruins que vinham de um rádio do apartamento vizinho. Sol e rádio anunciavam um novo dia. Para aqueles dois, só restava o medo.
O sol, que ainda existia, insistia também em entrar pela janela. Junto com as notícias ruins que vinham de um rádio do apartamento vizinho. Sol e rádio anunciavam um novo dia. Para aqueles dois, só restava o medo.
Conseguiram alugar a kit depois de muita procura e de muitas mentiras. Falaram na imobiliária que eram primos, apesar de não se parecerem em nada: Ela, gordinha e loira natural. Ele, moreno e magro, bem magro. E muito mais alto do que ela. Eram, portanto, diferentes, mas eles fingiram acreditar num possível e inventado parentesco. Portanto, precisavam disfarçar sempre: nos elevadores, na portaria e até nas ruas, tudo agora era cheio de câmeras que seguiam as vidas e os seres. Tomaram o café da manhã num depressivo silêncio. O silêncio dos oprimidos, aquele que incomoda. Ele deu um rápido beijo no rosto dela, murmurou baixo um “eu te amo”, que saiu entrecortado, numa garganta seca. Viu que havia lágrimas nos olhos dela, mas nada falou. Vestiu-se e saiu para o trabalho. Ela aguardou uns cinco minutos e desceu também. Precisavam trabalhar muito, as coisas estavam caras demais.
Sempre era assim, ele ia por uma calçada e ela por outra, passos rápidos e os olhos abaixados. Ele sempre usava um toque de rosa na roupa, ela usava ternos sérios, escuros. Entraram num bar, sempre o mesmo, mas lá fingiam que não se conheciam. Ele pedia um suco e ela comprava cigarros. Fortes. Era a última oportunidade que tinham de – disfarçadamente – se olharem, antes do trabalho. Ele a amava, muito. Ela correspondia. Muito.
O clima seco e cinza dava já a margem para o tenebroso. Ele parou em frente a uma banca de jornal para ler as manchetes. Estava lá, em todos os jornais e em letras garrafais: “PROIBIDO O HETEROSSEXUALISMO EM TODO O TERRITÓRIO NACIONAL”.
O Partido Homossexualista Brasileiro estava no poder já há dez anos, mas só nos últimos dois é que conseguiram implantar uma poderosa ditadura, englobando num só todos os outros partidos. O presidente havia acabado com o exército e criado uma nova força militar, onde todos eram obrigados a serem homossexuais. E criou também o primeiro exército lésbico. Com ajuda de organismos internacionais, declarou que a heterossexualidade era uma doença e que agora deveria ser chamada “heterossexualismo”.
Ele chegou no serviço. Deu o “Bom dia” com um leve meneio de cabeça e disse o andar para o ascensorista com uma voz em falsete. Chegou no seu ambiente profissional cantando marchinhas e usando expressões que treinava todos os dias em frente do espelho, sorrindo sem parar e com as mãos para o alto, gesticulando muito. Lá, todos eram assim. Depois ele trancou-se no banheiro, o único lugar ainda livre e lá chorou, chorou apertando o lenço no rosto para que ninguém lá fora ouvisse os soluços. Mas soluçava muito, não podia acreditar naquela notícia. Ele mijava sentado. Ela, em pé.
Deputados aprovaram a inseminação artificial para a procriação, gays doavam o seu esperma para casais de lésbicas e assim estava garantida a perpetuação da espécie. Igrejas homossexualistas foram abertas e a Bíblia foi totalmente reescrita por renomados intelectuais com o intuito de transformar o heterossexualismo como uma condenação e um grave mal. Uma obra do demônio. Os crentes abordavam pessoas na rua para exorcizar a heterossexualidade. As poucas organizações que defendiam o heterossexualismo foram fechadas e seus idealizadores presos. Ele trabalhava com estética, apesar de ter se formado há mais de doze anos como engenheiro. Ela trabalhava como motorista numa frota de caminhões para entregas. Descia sua voz em dois tons mais graves ao falar, também havia treinado no espelho. Mas pensava nele o dia todo. E com ternura, sentindo-se uma doente. Mesmo não querendo, lembrou-se do beijo dele naquela manhã e sentiu vontade de chorar de saudades. Não chorou, pois mulheres não choram. Mulheres não choram, apenas guiam caminhões com o cigarro sem filtro no canto da boca. Lembrou-se da mãe, já idosa, a quem havia contado sua orientação sexual para a heterossexualidade há alguns anos, causando um verdadeiro transtorno na família. A mãe ligava preocupada todos os dias, estavam assassinando heterossexuais e parece que a polícia nada fazia para desvendar os crimes e punir os culpados. Pior, riam muito quando um heterossexual procurava, por qualquer motivo, uma delegacia. E as faculdades de moda e de como dirigir caminhões proliferavam. Médicos e advogados abandonavam suas profissões para “virarem” cabeleireiros. O futebol foi permitido só para as meninas e os meninos brincavam de casinha. Quem fugia a essa regra era desmoralizado e objeto de chacota dos colegas, com o apoio de professores e professoras. Meninos, assim considerados doentes, eram chamados de “machinho”, vergonha máxima. Assim era a vida.
Para evitar dar alguma bandeira de que ele era um hétero, preferia almoçar sozinho, num canto do restaurante da empresa. Se alguém olhava para ele, inclinava a cabeça de lado e dava um tchauzinho, puxava uma base de unhas e pintava as mesmas, sempre procurando ser visto nessa atitude. Ela, apenas acelerava o caminhão na vã esperança de morrer num acidente.
Psiquiatras internacionais foram contratados para desenvolver teorias e dar embasamento à homossexualidade como norma e ao heterossexualismo como doença. O que faziam de bom grado, com convincentes discursos “científicos”, visando valer seus altos salários e cargos. Clorpromazina e Triptanol eram usados sem nenhuma parcimônia nos que insistiam nessa doença horrível, o heterossexualismo. E também choques elétricos, é claro... se nada disso adiantasse, ainda havia recursos como deportações e confinamentos em ilhas comandadas por Nanny People e Dimmy Kier, representantes máximas do governo homossexualista. Roberta Close foi muito criticada, por buscar o padrão hétero de comportamento e tentar ser uma mulher hétero, quando deveria ser uma bicha. Foi declarada doente e confinada numa Casa de Custódia, em Taubaté, São Paulo.
Às seis horas todos e todas saíam dos seus empregos e voltavam para suas casas. Nas ruas, um festival de desmunhecação, por um lado. Por outro, cuspidas no chão e cigarro nos cantos da boca. Coçadas no saco, claro, se bem que nem todas sabiam fazer com convicção tal gesto. A noite caia.
E eles, os dois, ele e ela, os dois que se amavam, um amor proibido, tiveram a infeliz idéia de se encontrarem na Praça da República. Ele a amava. Ela o amava. Olhava para ele com uma ternura perigosa e denunciadora, provocadora. Amava a barba dele, que no fim do dia traçava um contorno azulado, tentador. Eles, os dois, se encontraram lá. Não perceberam que deram as mãos, ela pousou sem querer o rosto no ombro dele. Quando viram, estavam cercados. Um único soco quebrou os dentes dele, usavam correntes e batiam com força. Pés com coturnos chutavam a cara e o estômago dele, a vagina e as costas dela. Correntes batiam na cabeça, gritos e gargalhadas, eram xingados com palavrões horríveis, como homem e mulher, os mais politicamente incorretos que existiam. Ele parou de respirar e ela ainda conseguiu ver a imagem dele, antes de se afogar na poça de sangue. Sangue misturado dos dois. Só muito depois a polícia foi chamada. Mas só recolheu os corpos.
Obrigado, Pólux!! Por ter colocado meu conto aqui... escrevi na intenção de fazerem todos e todas que não vivem o horror da homofobia perceberem o quanto ela dói e é destruidora e o quanto os preconceitos são manipulados pelo Poder e pelas religiões, sem falar também no conservadorismo.
ResponderExcluirBeijo!
Ricardo Aguieiras
aguieiras2002@yahoo.com.br
Impecável! Forte e emocionante, de estilo irretocável. Uma bela surpresa para quem ainda nao conhece os escritos do Ricardo, que precisa reunir urgentemente essas maravilhas em um belíssimo livro. Contos como esse nos alertam para o que significa na realidade a exclusao: absurdo e desumanidade. Parabéns Ricardo!Bjos do amigo Christian Petrizi c.petrizi@hotmail.com
ResponderExcluirparabens,lindo demais!!!
ResponderExcluirBelíssimo conto
ResponderExcluirEu até chorei. Apesar de saber dessa sociedade podre que vivemos...ainda consigo ter um pouco de sentimento, coisa que não querem que tenhamos...Pra eles deve ser doença também!!!
Caro Ricardo, sou amiga da Helô em Paraíso, só o conheço no facebook. Li seu conto e entendi porque a Helô te ama tanto. Parabéns, fiquei emocionada e surpresa, mas as coisas vão mudar, eu tenho certeza, a luta vai valer a pena! Grande abraço, Laura
ResponderExcluirQue lindo.
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